segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Conceito de Direção


É mágico e transformador trabalhar com as memórias, com o que somos todos nós. Devaneios, sonhos, pesadelos, memórias. Tudo é parte do que somos e fomos. É o que nos torna humanos. É o que nos permite crescer. E nos permite seguir. Nos conhecer melhor como pessoas. Entender os passos de nossa família, para firmar melhor nossos próprios passos. Continuidade. E entendimento. Devaneio. Pés firmes no chão. Pés pro ar. Nos deixar levar.

As vezes uma abertura para essa dimensão de tempo se dá através de cheiros, outras vezes são fotos. No caso de Laura, o que a leva diretamente a seu passado é um disco que fora gravado por seu avô em uma de suas viagens à Nova York. E ouvir o "disquinho" abre essa dimensão de tempo... Em que existiu aquele momento para que ela exista... De certa forma o passado se torna presente. O tempo é, simplesmente.

Descalça é mais que um filme sobre resgate ou passado. É um filme sobre um amor incondicional ao que se é, ao que se foi. É uma poesia visual sobre uma jovem que se depara com sua casa inicial, esse ninho que durante pouco tempo lhe trouxe segurança e estabilidade, o lugar mais significativo de sua história, onde por apenas 5 anos teve a oportunidade de ter contato com aqueles que a trouxeram aos mundo e que tanto de si lhe doaram. Laura e sua casa se descobrem mutuamente, uma complementando e surpreendendo à outra.

Dotado de sensações e buscando a exclusão dos diálogos, Descalça, um curta metragem de 13 minutos, delineia a trajetória de uma personagem que encontra com seus monstros do passado e traz ao primeiro andar de sua vida, memórias e sentimentos até então desconhecidos. É o seu momento de auto-conhecimento. É agora que Laura mergulha nela mesma e enfrenta todos os seus medos, para que assim possa firmar seus pés no chão e seguir seu próprio caminho.

O filme possui duas personagens principais, que se misturam e se completam, uma não existindo sem a outra, sendo elas Laura, e a casa.

A casa de Laura é a grande guardiã de todas as suas memórias, sonhos e devaneios. É nesse ambiente que ela, Laura, se depara com seu passado, onde ela passa a se conhecer como nunca antes tivera feito. A relação de ambas no início se dá com um certo desdém. Laura não lhe dedica muita atenção, enquanto a casa por sua vez, reserva seus maiores segredos para os momentos que ainda estão por vir.

Quando Laura machuca o pé, abre-se também dentro dela uma grande ferida. Ferida esta que esteve presente também na casa durante todos esses anos. Agora é o momento que Laura mergulha em seus próprios mistérios e juntas elas renascem com ainda mais força.

Segundo Gaston Bachelard em seu livro “A poética do espaço”, pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam tesouros dos dias antigos. A casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os valores humanos. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela o mantém através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. E sempre, nos nossos devaneios, ela é um grande berço.

Algumas referências de direção são os filmes O Espelho, de Tarkovski; A Mulher sem Cabeça, de Lucrecia Martel; Foi Apenas um Sonho, de Sam Mendes; A Liberdade é Azul, de Kristof Kieslovski. Todos eles trabalham diretamente com a angustia de seus personagens, que enfrentam momentos de total abstração da realidade e perda de seus sentidos em função de imagens intermitentes de sua memória e crise profunda com o cotidiano.

O filme se divide em quatro situações: realidade; devaneios; memórias e sonhos, sendo que para caracterizar cada um deles, optamos por dar-lhes nuances que correspondem às estações do ano: primavera; verão; outono e inverno respectivamente. Dessa forma, criaremos um ambiente específico para cada situação, dando-lhes assim uma unidade de artística e fotográfica.

No início do filme, a casa está escura e abandonada. Há muitas caixas espalhadas pela casa, as janelas ficam quase sempre fechadas, há muita poeira por todos os lados. Laura ainda não teve coragem de acessar alguns lugares da casa, criando um bloqueio para evoluir e tocar a sua vida. O agente transformador da personagem, o que a leva a iniciar a sua jornada é o disco que encontra entre a bagunça. É nesse momento que os sonhos, memórias e devaneios começam a aparecer subitamente e aos poucos a levam a iniciar toda uma transformação não só interior, como também exterior, o que poderá ser visto também na decoração da casa.

As memórias, sonhos e devaneios serão trabalhadas de forma não menos cuidada, mas mais livres e soltas. Existe uma leveza e espontaneidade criadas para esse momento que nunca se darão na vida real da personagem.

Os devaneios, correspondentes ao verão, são momentos em que a realidade se mistura com a imaginação da personagem. Eles serão gravados em suporte digital e sua principal diferença em relação à realidade é o contraste, que será muito superior, realçando as cores e a luminosidade do ambiente.

As memórias, correspondentes ao outono e seus tons de terra, serão capturadas também em suporte digital e posteriormente tratadas no After Effects para que dessa forma tenham a textura e intensidade de cor necessárias para a nossa narrativa. As memórias remetem diretamente ao passado da personagem e tudo aquilo que lhe é remetido graças ao seu contato com a casa e com o que nela está escondido. Conforme Laura se depara com caixas, fotos e objetos do passado, suas memórias afloram e ela se encontra com tudo aquilo que um dia optou por deixar para trás. Nesse momento contaremos com uma atriz mirim que fará o papel da Laura pequena e que será o nosso grande foco de atenção. O que buscamos como imagens de memórias são situações simples porém marcantes. É o ordinário que se manifesta como crucial nas lembranças de Laura.

Os sonhos, referentes ao inverno, serão os momentos mais confusos, sombrios e angustiantes que passam pela mente de Laura. O suporte utilizado para o mesmo é o stopmotion, que nos permite a elaboração de situações mais surreais e que propicia a criação de elementos lúdicos capazes de ganhar vida e interagir diretamente com Laura em diversas situações.

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